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O mundo substantivo de Leila Danziger: poesia e afeto | Gustavo Silveira Ribeiro

1. A incomensurável tristeza do que existe: talvez esse seja o verso com que se deva começar a ler a poesia da artista carioca Leila Danziger. Nele se concentram alguns dos procedimentos formais mais caros à autora, e também nele se pode surpreender o passo em que ética e estética se tocam e se confundem no seu trabalho. Em primeiro lugar, o plano da linguagem e do sensível: as palavras que aqui se lêem são parte do poema “Minima Moralia” e acenam, como o uso do itálico (e o próprio título do poema) vão sugerir, para fora, para um outro texto e para uma outra voz. Foram escritas pelo filósofo Theodor W. Adorno, e no texto de Danziger vão deslocadas, expropriadas, habitando um corpo – e um universo de sentidos – que é e não é propriamente seu. Não há metáforas aqui: quase que despida de imagens, a linguagem evoca e descreve. A beleza discreta da sentença, sua força e permanência vêm da harmonia sutil que a atravessa: a construção do pensamento se dá também na observância das tonalidades, das estruturas sonoras e da reiteração de um mesmo arranjo consonantal. O lamento que dele emana nasce, antes de tudo, da sua força poética. E é a partir dessa perspectiva de encantamento e cuidado que vai crescer e se impor o sentido fundamental do verso, tal como ele se apresenta, capturado, pela autora: mais do que descrever ou enunciar um afeto que se espalha, o que se coloca tem a ver com a atenção (isto é, com espera e abertura): a poeta, assim como o filósofo, parecem dizer da profunda atenção que dedicam ao mundo, do olhar interessado que lançam sobre seres e coisas, percebendo neles, principalmente nas frestas e cenas e vidas menores (vida danificada, dirá Adorno), a tristeza que as constitui. Em poemas como “Uma mulher transparente” e “Fato bruto”, textos iniciais da coletânea que também acolhe o poema antes referido, a perspectiva é essa: Danziger observa ao redor, colhendo na rua ou nas páginas secundárias do jornal a massa viva e dolorosa com que forma seus versos: no abandono de uma mulher enlouquecida na cidade, seu corpo envolto em trapos e sujeira [“ela é feita pela subtração de matéria” (DANZIGER, 2012, p. 9)], digna ainda assim na sua posição frágil; na fotografia e na notícia banalizada da morte de uma baleia em plena praia, seu ser imenso encalhado, apodrecendo ao ar livre [“A baleia pedia crônicas de espanto/mas nem as ondas revoltam-se –/não há assombro por sua carne inerte” (DANZIGER, 2012, p. 11)]. Em ambos os casos, o gesto da escrita se faz a partir da comoção: da identificação impossível com aquela mulher apagada, que num certo sentido é uma projeção da artista, da recolha de si e acolhimento do outro (sua voz, sua presença) que caracteriza tantos de seus poemas e instalações; do gesto lutuoso, ativo, do desejo de “fazer um túmulo digno” para o animal, um mamífero de linguagem e afetos complexos, “que conhece as águas e as cinzas” (DANZIGER, 2012, p. 11), substâncias sagradas para a vida e para a memória. A palavra-pensante, que apresenta, narra ou reflete, é o centro do universo criativo e sentimental da autora que, de pé sobre a língua, sabe “escavar e manobrar/os versos” (DANZIGER, 2012, p. 15) sem deixar de imprimir neles as marcas de uma muito pessoal ética da representação: “a linguagem informativa/acumulada em pilhas/que era preciso desfazer/esvaziar/apagar/erodir a matéria-jornal/turvá-la de poesia” (DANZIGER, 2012, p. 16). Todos esses elementos, tudo o que se destacou (ou derivou) de Minima Moralia (livro e poema, de dupla autoria) – a escrita que se faz como recorte e apropriação, a construção delicada e cuidadosa da frase (o ouvido atento à sua música mínima), a composição pura empatia e afeto – são traços marcantes da poesia da autora, procedimentos comuns nos textos que formam Três ensaios de fala (DANZIGER, 2012), seu primeiro e ainda pouco conhecido livro de poemas.


2. Eu sou o Arquivo: assim se apresenta pelo menos uma vez a autora, criação e criadora da ficção suprema que atravessa os seus poemas. E onde se lê arquivo, seria possível ler também Passado ou Memória, ainda que os termos e conceitos não sejam coincidentes. Há na poesia de Leila Danziger um profundo interesse pelo tempo, sua força paradoxal, igualmente derrisória e construtiva. Diante do tempo é que a poeta vai afirmar a si como Arquivo, como depositária dos fragmentos e dos restos da existência comum, guardiã dos documentos que dão conta de um mundo em extinção. Atravessada por nomes próprios, datas, toponímias e topografias precisas, a poesia da artista incorpora a si – obedecendo a uma pulsão arquivística e a uma curiosidade próxima à do antiquário – tênues evidências materiais, vestígios mesmo do tempo, de sua passagem, de vários e múltiplos tempos que se entrelaçam e cruzam formando uma rede intrincada de referências privadas e sociais, íntimas e públicas. Em “Berlin, Zoo”, por exemplo, o desejo pelo rastro faz com que o poema ocupe o lugar da peça de memória que falta: “Pisam juntos o mesmo cascalho//E como não há foto alguma desse encontro/reúno-os/aqui/meu filho, aos quatro anos, e seu pai” (DANZIGER, 2012, p. 28). A larga presença nos textos de jornais, fotografias, vídeos e materiais impressos não será gratuita: eles assinalam, pela periodicidade e pelas inscrições que contém, a concretude dos dias e anos que se sucedem, acumulados pela casa em pilhas, desgastando-se diante dos olhos da artista. São tema, objeto, anteparo e moldura para os poemas, bem como para inúmeras intervenções artísticas, das quais a série Vanitas talvez seja a mais conhecida: os periódicos rasurados, a escrita em palimpsesto desenterrando palavras e imagens, produzindo novas perspectivas para aquilo que antes era apenas linguagem esvaziada. Num caso como no outro, isto é, nos poemas e nas artes plásticas – formas que estabelecem entre si zonas solidariedade e contágio – o processo mesmo de envelhecimento e transformação da matéria, o acúmulo dos objetos e dos acontecimentos, participa da lógica da criação: “Retiro o elástico que une os cartões/entregues assim/à mesa/em dispersão//e leio – /o delicado trabalho do mofo/que avança decidido pelas laterais” (DANZIGER, 2012, p. 34; grifo meu). A papelada inútil, mas reveladora, que a vida e a burocracia reúnem é também convite à invenção: “Eu percorro as trilhas/por entre bricabraques imprescindíveis/– todos os recibos de nossas vidas/tantas agendas em branco” (DANZIGER, 2012, p. 32). Se as instalações e quadros vão deslocando, escavando os indícios do dia até torna-los superfícies quase brancas, nas quais se pode novamente escrever, os poemas vão tratar de informar esse trabalho, pensa-lo longamente, contrasta-lo com outros modos de, ao mesmo tempo, reter e esquecer o mundo, guardando de mistura o supérfluo e o essencial, sem saber de fato onde começa um e termina o outro: “Eu sou a membrana que os une/– nomes, crianças, vozes, areia./Filmo de modo tão compulsivo/quanto as crianças escavam./Estamos juntos no desejo de transferir matéria/: areia sobre areia/: imagem sobre imagem” (DANZIGER, 2012, p. 63). Ainda que muitas vezes amparada no presente, o vetor da imaginação artística de Leila Danziger aponta sempre para trás: as lembranças familiares e pessoais, os rastros materiais e simbólicos da presença viva daqueles que se foram, a historicidade de gestos e paisagens, a ação mesma do tempo, enfim, sobre os seres e as coisas: tudo converge para o passado, para estratégias que se apresentam para enfrenta-lo. Ora a memória, selecionado, deformando, dando significados distintos à vida, forjando a identidade e os liames que mantém a artista atada ao mundo. Ora o arquivo, essa compulsão voraz, desejo impossível e melancólico de preservar intacta a passagem dos corpos (quaisquer que sejam eles) pela fricção contínua da existência. Seja como for, a autora traz nos ombros enorme responsabilidade: suas criações vão responder sempre, pela linguagem e a partir do afeto, à constatação que aparece no poema dedicado a Robert Smithson: “E isso, ao menos, todos temos em comum/– entropia e nenhum sentido” (DANZIGER, 2012, p. 22). Absurdos, fadados inexoravelmente à destruição e ao apagamento, ainda assim, ou por isso mesmo, enterramos nossos mortos, inventamos a beleza, fazemos da língua perplexidade e sobrevivência.


3. como o desejo e a distância: a poesia de Leila Danziger nos fala assim, de longe e sempre em demanda, buscando modos de aproximação. Os muitos diálogos que estabelece, as muitas formas de endereçamento que a atravessam e constituem são prova disso, do modo como a poesia se equilibra entre a distância e o desejo. Para dizer com Blanchot (2002), ela quer e procura acolher em seus textos une voix venue d’ailleurs, construindo, para isso, um espaço de escrita que é também espaço da reflexão crítica, da citação e da alteridade – em todos esses elementos, desnecessário lembrar, é preciso que haja distanciamento, saída de si. Para dizer de uma só vez e de modo sintético: a poesia de Danziger procura dizer(-se) com palavras alheias. E vai nisso a percepção de um paradoxo: profundamente íntima e pessoal, de fato uma poesia cujo território incontornável é a biografia e a subjetividade, a criação verbal para a artista é permanentemente invadida por vozes, imagens e sons outros, vindos de outros lugares, elementos que apontam e vão confirmar, ainda uma vez, a absoluta estrangeiridade que perfaz o ato da escrita, qualquer escrita – a do poema em particular. E, consideradas as coisas sob esse ângulo, tornam-se mais claras, ganham outro sentido para além da notação estritamente pessoal, as referências que os poemas fazem a viagens, terras distantes, continentes e idiomas diversos: tudo vai revelar, em última instância, a importância do trânsito e dos deslocamentos em Três ensaios de fala, elementos que perpassam, de muitas maneiras, a construção do livro. A cada momento, é possível notar, a mesma questão reaparece sob roupagem e sentido diverso, tornando evidentes as “marcas de difíceis negociações/entre o dentro e o fora” (DANZIGER, 2012, p. 41; grifo meu). Na multiplicidade de línguas que habitam o texto (o hebraico, o alemão, o inglês e o francês), sua feição de Babel discreta, a linguagem salta e explode a sua órbita, revelando-se também obstáculo à comunicação. Na memória das viagens a Alemanha e a Israel, lugares de origem e pertencimento familiar e comunitário, o ambiente é estranho, guardando sempre um travo de desconhecimento e dúvida. E mesmo nos périplos urbanos pelo Rio de Janeiro e por Tel Aviv, territórios domados, a memória e a imaginação às vezes criam percursos inesperados, percepções que desfamiliarizam a paisagem e inundam-na de tempos e lugares outros, sobrepostos, como ocorre em poemas como “Cinelândia – Cantagalo” e o “Brasília”. A própria trama de referências literárias, artísticas e culturais, a costura de textos que compõe o volume, sai do controle em certos momentos, deixando de ser apenas leitura apaixonada da obra de nomes como Robert Smithson, Joseph Beuys ou Jacques Roubaud, passando a ser conversa em desafio, endereçamento afetivo que descobre fissuras e devolve contradições, como no poema “Joseph”, no qual apresenta suas divergências com o avô de seu filho (que também tem o nome do artista a quem a poeta está indissoluvelmente ligada: ao passo que ele conhecia minúcias da cidade europeia onde nasceu, das águas que a banhavam, Danziger afirma: “eu me interesso mais/pelas impurezas do Danúbio/pelas cheias do dilúvio/e experimento uma extensa gama/de afetos insolúveis/pelas gerações/– de humanos e bichos – engendradas desde Noé” (DANZIGER, 2012, p. 18). Em cada um desses aspectos do problema, o não-pertencimento e a busca de asserção, a passagem difícil entre o que é externo e o que é interior, enfim, conferem tensão e intensidade aos versos da poeta, fazendo-os trepidar por debaixo do tom menor, da aparente harmonia que os caracterizam. Exemplo talvez radical e mais significativo desse processo vai se encontrar na focalização que os poemas fazem, em chave metalinguística e metapoética, da própria linguagem em que são compostos. Em textos como “Aventurado”, “Três ensaios de fala” e, principalmente, “Eu te amo”, Danziger vai pensar sobre os mistérios que habitam a fala, suas potencialidades gregárias e estéticas, bem como seus abismos. No poema em tela, a confissão amorosa é o limite possível da linguagem e da comunicação, o ponto exato da tensão entre o desejo e a distância, uma vez que endereçamento que a locução do título carrega dirige-se sempre a um outro, alguém que pode não suportar sobre si o peso do amor revelado. Daí o tremor, a língua claudicante: “A palavra gagueja na travessia de um perigo”. Daí a angústia (o peito estreitado que vai perdendo o fôlego) no gesto da fala que, apesar de tudo, se completa: “Cada palavra/– contraída/expandida –/sabe que o risco/é parte integrante do ritmo/e gaguejar é a consciência extrema do risco da fala/do risco do afeto da fala” (DANZIGER, 2012, p. 54). O sentido da composição poética em Leila Danziger se deixa ver aqui, quem sabe: apesar dos perigos da língua [ferid’alíngua, conforme Lucíola Macêdo (2014)], a artista “sustenta a voz/e ergue a frase no ar” (DANZIGER, 2012, p. 54), construindo os seus precários monumentos verbais como um ato necessário de entrega, um salto no desconhecido de si e do mundo.


Referências

ADORNO, Theodor. Mínima Moralia (Azougue, 2008)

BLANCHOT, Maurice. Une voix venue d’ailleurs (Gallimard, 2002)

DANZIGER, Leila. Três ensaios de fala (7Letras, 2012)

MACÊDO, Lucíola. Ferid’alíngua: a poética de Leila Danziger (Arquivo Maaravi, 2014)


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