RESENHAS, COMENTÁRIOS, INTERLOCUÇÕES, TRADUÇÕES
IGNACIO MORALES (tradução) | Três ensayos de habla, Saposcat, 21/05/2018.
MARIANA IANELLI | Três corações pensantes: a poesia de Leila Danziger, Adriana Lisboa e Maria Lúcia Dal Farra , Jornal Rascunho, janeiro de 2018.
RAFAEL ZACCA | Duas cartas para Leila Danziger | Grampo Canoa #4, Luna Parque Edições, janeiro de 2018.
GUSTAVO SILVEIRA RIBEIRO (org.) | A extração dos dias (poesia brasileira agora), Curitiba: Escamandro, 2017.
PATRÍCIA LAVELLE | A força entre o choque a delicadeza, Revista Pessoa, 27/08/2017
GUSTAVO SILVEIRA RIBEIRO | Luto e trasmissão na poesia de Leila Danziger
Arquivo Maaravi, Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG, v.11, número 20, 2017.
RAFAEL ZACCA | Carta a Leila Danziger a propósito de seu mais novo livro de poemas
Agoragonia, 20 de dezembro de 2016
MARIANA FILGUEIRAS | Artista carioca cria livro a partir das memórias do pai
O Globo, 3 de janeiro de 2017.
GUSTAVO SILVEIRA RIBEIRO | No centro de mundos em extinção
Revista Caliban, 17 de novembro de 2016.
GUSTAVO SILVEIRA RIBEIRO | O mundo substantivo de Leila Danziger: poesia e afeto
Grampo Resenhas #9_agosto de 2016, Luna Parque Edições.
ROSANA KOHL BINES | No estúdio verbal de Leila Danziger
Cadernos de língua e literatura hebraica, n. 12, Universidade de São Paulo, abril 2015.
CARLITO AZEVEDO | Névoa e neblina
Risco, Caderno Prosa, O Globo, 27/12/2014.
BLOG ESCAMANDRO | POESIA, TRADUÇÃO, CRÍTICA,
20/01/2014
MARIANA IANELLI | Império das coisas ínfimas
O Globo (Caderno Prosa& Verso), 12/01/2013.
CARLITO AZEVEDO | Uma maneira particular de fluir
Risco, Caderno Prosa, O Globo, 23/09/2010.
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da série Economia
Desfaço o apartamento –
o quarto dos fundos era a pátria.
Guardo intacta a lembrança das varandas
que se fecharam
antes de meu nascimento
com divisórias complacentes
permeáveis ao mundo
Tudo vaza
para o interior
e janelas-fantasma
insistem em enquadrar
a lembrança do oceano.
(...)
Desejo apenas o que há de mais inútil em seus arquivos
certificados de garantia de todos os eletrodomésticos obsoletos
manual da Kombi de 1970
pocket books
(tantas capas de naufrágios)
dezenas de fitas magnéticas
com camadas de ruídos
em tempo longuíssimo
Leio 30 anos de nossas vidas
em fichas de débitos e créditos
e estou ali
– no centro –
de seus mundos em extinção
Recolho promessas não realizadas
em sua língua da infância –
calcinações do solo perdido
e prospectos intactos
na língua renascida
(que é matéria incandescente)
Reviro blocos de décadas
cuja integridade se rompe
ao meu contato
e entendo –
brinco de céu e inferno com os objetos
sou o Além das coisas remotas.
Fato bruto
[A partir de uma foto do jornal O Globo, de 6 de agosto de 2005.]
Encontrei a baleia encalhada
entre um anúncio de eletrodomésticos
e algumas notícias gastas.
Palavras de puro mato
envolviam sua carcaça triste e obscena.
A baleia pedia crônicas de espanto
mas nem as ondas revoltam-se –
não há assombro por sua carne inerte.
Na faixa de areia
a moça dá as costas ao fato bruto
que é uma baleia encalhada
e continua tranqüila
seu bronzeado.
(Mas o sol não esquece –
naquele mesmo dia
há sessenta anos
– sobre o Pacífico –
o calor de dez mil rivais.)
Minha dúvida é onde fazer um túmulo digno para a baleia –
que conhece as águas e as cinzas.
Enterro seu corpo de imagem
por entre as páginas que nos contam o dilúvio.
Assinalo no calendário
– agosto é mês de baleias mortas.
Minima Moralia
Sobre a mesa de trabalho
a fita adesiva adere aos jornais
e abafa os ruídos do dia.
Permite apenas a leitura sobre um peixe cego
que recuperou a visão
após um milhão de anos no escuro.
Foi este um instante de felicidade súbita
que se mede envergonhada
a incomensurável tristeza do que existe
e se me perguntarem “como foi seu dia”
direi palavras prontas
mas nada sobre aquilo que abafa os ruídos
ou a saída de um peixe da escuridão.
Guardo a felicidade entre as coisas mudas
e certos dias, para salvá-la,
entrego-a de vez ao esquecimento.
(Três ensaios de fala, 7Letras, 2012)
Quarto de maravilhas
Esquecido pelo menino no extremo do quarto
o jogo da memória ativa nostalgias modernistas
Broadway Boogie-Woogie que se expande e se retrai
em meio a tocos de lápis
borrachas usadas
e a pedra dos rins de um ruminante
que é um poderoso amuleto contra a melancolia.
Espelhos que se recusam à imagem secretam também certo mofo protetor.
Cada coisa ocupa seu justo lugar embaralhado a outras coisas
e é nocivo desfazer a solidariedade
que une os embaçados
àqueles que refletem a luz.
(Três ensaios de fala, 7Letras, 2012)
David
Rebeca e seu gesto essencial: dar água. (Orides Fontela)
Meu filho atravessa a sala.
Veste uma bermuda.
Deixa um rastro de banho.
Sei que revirou os tapetes do banheiro.
Conta que lê um livro de 652 páginas
com um número jamais visto de palavras compostas.
Eu penso em um poço,
uma tenda,
uma muralha.
Qual será o meu gesto essencial?
Enovelar o tempo? Ativar espaços? Mover imagens?
Amar um filho, o meu, o único?
(Três ensaios de fala, 7Letras, 2012)
Hebraico
À direita da mesa
29 cartões com as letras do alfabeto
método Ler é fácil
comprado por meu pai
em 1968
por duzentos e vinte cruzeiros novos
pagos à Mazal, rua senador Dantas 45-B, sala 801 –
recibo guardado em um envelope da Revista Engenheiro Moderno.
Examine todos os itens do método
Tome agora a sua decisão
Retiro o elástico que reúne os cartões
entregues assim
à mesa
em dispersão
e leio –
o delicado trabalho do mofo que avança decidido pelas laterais.
(Há poderosas
formas de vida
que se reproduzem
em úmida comunidade
desde o Levítico. )
___________
Reúno novamente as letras do alfabeto.
Investigo a origem da dissolução
que se propaga a partir do campo superior direito
e percebo -
sedimentações esbranquiçadas
formaram-se
no ponto exato
onde meu pai segurava os cartões.
(Três ensaios de fala, 7Letras, 2012)
Joseph
1
certa vez
Joseph Beuys cobriu o rosto
com ouro e mel
sentou-se e explicou pinturas a uma lebre morta
a cada semana
eu me sento com os braços vazios
e preferia nada ter que explicar a ninguém
não sei se estão mesmo vivos os que me ouvem
exaustos
inaugurais e tardios
seres turvos
antes das dez da manhã
também eu
a cada semana
preferia apenas dizer -
eu creio
- em pedaços de basalto entre a gordura e o feltro
- em pessoas que dançam num campo de cravos
- em explicar pinturas a uma lebre morta
- em Joseph Cornell que morou a vida inteira
em Utopia Parkway
2
um outro Joseph foi o avô de meu filho
ele anotava pequenas séries de cinco ou seis letras e números
com sua caligrafia minúscula
todos os dias a mesma coisa
era importante saber quantos compassos
de uma canção medieval
foram aproveitados por Wagner
algumas décadas antes da noite polar
quando a escuridão tornou-se permanente
24 horas por dia
Joseph sabia de cor
as oscilações do rio Reno
que encontram as águas do Mosel
na cidade onde viveu
eu me interesso mais
pelas impurezas do Danúbio
pelas cheias do dilúvio
e experimento uma extensa gama
de afetos insolúveis
pelas gerações
- de humanos e bichos -
engendradas desde Noé
(Três ensaios de fala, 7Letras, 2012)
Destroços
dessa vez
creio que o início de tudo
foi a persiana que esqueci aberta
deixando que o sol esquentasse
em minha ausência
furiosamente
dias e dias
os versos de Celan
acumulados sobre a mesa
as palavras
de madeira e borracha
os carimbos
começaram a derreter e a gaguejar
- lallen und lallen -
balbuciar e repetir
: destroços celestes
: cinza-e-cinza Ho-sana anéis-almas
de uma forma não prevista no início do projeto
que queria apenas escavar e manobrar
os versos
como se faz com a própria
terra-areia-ar-eu-você-Ossip-Marina
e tantos outros nomes
todos os nomes
impronunciáveis
derretidos
fundidos
aos jornais
que cresceram como erva daninha
em minha ausência
furiosamente
dias e dias
a linguagem informativa
acumulada em pilhas
que era preciso desfazer
esvaziar
apagar
erodir a matéria-jornal
turvá-la de poesia
mas percebi
- surpresa -
o desastre
o desvio
tudo fora feito
sem mim
(Três ensaios de fala, 2012)
Uma mulher transparente
Envolta em plástico-bolha, ela não olha ninguém.
Ao seu lado, a bagagem
é um enorme saco transparente
que contém outros sacos
repletos de si mesmos.
Há ordem e limpeza em seus invólucros,
confiança serena em tantas membranas.
Eu passo com cuidado
e cumprimento em silêncio
o ser invisível
que ela acredita ser
- e nem sombra nem luz -
ela é feita pela subtração de matéria.
No sábado pela manhã,
costuma ocupar o mesmo lugar -
debaixo do viaduto,
onde há muitos anos nadavam os peixes.
(Três ensaios de fala, 7Letras, 2012)
Dias temíveis
Enquanto o sol da manhã é filtrado pela cortina de palhinha
perfeita
- não fosse um único ponto esgarçado -
o escritório se organiza em volumes
de sombras delicadas
que você sempre dissipou
rapidamente
com a luz artificial
fluorescente (porque mais econômica)
acesa de manhã à noite.
E o que mudou é a poeira
agora retirada dia sim dia não
em rituais que domesticam o espaço
enfim limpo
e desprotegido
sem seus gestos de
semeador de pó.
Eu percorro as trilhas
por entre bricabraques imprescindíveis
- todos os recibos de nossas vidas
tantas agendas em branco
alguns rostos que tive
e convites para os dias temíveis
(fila K nº 18, fila J nº 16)
E o escritório se organiza
dessa vez
em volumes de sombras embrutecidas
pela ausência da poeira
que você sempre cultivou
e estendeu
como faixa de proteção
diante de suas áreas de perigo.
Abrem-se as arcas
- não encontro nenhum segredo.
E o pó ainda teima por entre os jornais
onde uma única frase resiste -
‘Mares poderão subir por mais mil anos’.
(para meu pai)
(Três ensaios de fala, 7Letras, 2012)