Mostras criam paralelos entre navios negreiros e refugiados do Holocausto
Silas Martí | Folha de São Paulo
"No porão do navio, negros algemados uns aos outros rodeiam a comoção. Um deles, só pele e osso, desmaia nos braços de uma mulher branca à luz da lanterna de um capataz. Outro negro estende as mãos em busca de um pote de água passado pelo alçapão do convés, como num gesto de socorro.
Johann Moritz Rugendas, o alemão que imaginou essa e outras cenas de uma terra exótica nos desenhos de seu livro “Voyage Pittoresque dans le Brésil”, ficou impressionado com a luz dos trópicos e sua incidência sobre a pele negra —de escravos açoitados, rendidos à dor e à exaustão agravadas pelo calor inclemente.
Sua passagem pelo Brasil no início do século 19, no rastro dos primeiros registros neoclássicos da colônia construídos por Debret, rendeu imagens dramáticas da vida nesse mundo novo e selvagem.
Baías coalhadas de barcos a vela, tempestades no mar, rituais indígenas, plantas estranhas e extensos panoramas criados por ele agora abarrotam as paredes de uma mostra no piso térreo da Caixa Cultural, mas são as imagens dos negros, entre os flagelados em praça pública ou acorrentados por capitães do mato, que têm maior ressonância.
“Ele está diante de outra realidade, outra luz. A pele negra, a opressão do branco, as lutas e as danças acendem nele um traço romântico que ele já tinha na Alemanha”, diz Angela Ancora da Luz, que organiza a exposição. “É uma realidade contada com uma liberdade artística, porque é lógico que Rugendas não vê um navio negreiro, mas vê navios.”
E também o mar ao redor deles. Duas marinhas lado a lado na mostra, aliás, atestam a evolução de seus traços, de um rigor acadêmico seguido à risca, com ondas claras retratadas sob um horizonte firme e equilibrado, à visão de um mar revolto debaixo de um céu de nuvens espessas.
Rugendas parece desenhar ali o caos que ameaça os homens e mulheres confinados em seu “Negros no Fundo do Porão”, desenho de 1835. Sequestrados para a escravidão, eles se rendem ao desespero —uns, aos prantos, levam as mãos ao rosto, enquanto outros se encolhem acuados contra as paredes do barco.
Mesmo que romantizada, tomando emprestadas algumas estratégias de composição então em voga entre os abolicionistas na representação da escravidão, a cena criada por ele não esconde o horror de verdade daquela época.
Não fica muito claro, aliás, se havia inclinações políticas por trás de seus retratos de escravos. Rugendas, cindido entre os excessos do romantismo alemão, o academicismo dos franceses vivendo no Brasil e os primeiros lampejos de um realismo vindouro, foi um artista ambíguo nesse sentido.
Mas o olhar de seus escravos, entre o espanto diante da barbárie e a letargia resignada, ainda emociona. Da mesma forma que os rostos fotografados em outra exposição no mesmo espaço cultural do centro paulistano.
No segundo andar, Leila Danziger mostra o horror um século depois de Rugendas. Descendente de judeus alemães que escaparam do Holocausto, a artista contemporânea resgatou imagens dos navios que atravessaram o Atlântico carregados de judeus fugindo da violência dos nazistas.
Eles, todos brancos, encaram a câmera como quem disseca um abismo. Qualquer promessa de paz e felicidade nas Américas tinha ainda um oceano infinito como obstáculo, toda uma jornada encarada a contragosto por gente forçada a deixar a vida inteira para trás.
Na instalação de Danziger, essas fotografias surgem lado a lado com os cantos dobrados, como se ela quisesse marcar a página de um livro com histórias parecidas tanto antes quanto depois.
Isso porque se existe um paralelo visual com o tráfico negreiro, em especial pelo volume de homens e mulheres espremidos nas embarcações, Danziger aponta ela mesma outro eco dolorido daquele momento histórico na atualidade, lembrando a morte de refugiados durante a travessia do Mediterrâneo rumo à Europa de portos cada vez mais fechados.
Ela lembra, aliás, o naufrágio recente de um barco de migrantes, que compara ao destino trágico do Struma, um navio com quase 800 judeus romenos a bordo bombardeado por um submarino no auge da Segunda Guerra.
“Era um escombro que não encontrava porto e todas essas pessoas morreram”, conta Danziger. “Tive vontade de fazer esses trabalhos porque isso não parou de acontecer. É recorrente nesta segunda década do século 21, com navios afundando no Mediterrâneo.”
Em paralelo às imagens históricas de sua exposição, a artista mostra alguns vídeos de resgates de refugiados de agora em alto mar, mas editou as imagens dos telejornais para mostrar só os momentos de salvamento, nunca os flagras de corpos sem vida, esboçando à força uma ideia de esperança em meio ao maremoto."
Johann Moritz Rugendas e Leila Danziger
Quando Ter. a dom., 9h às 19h. Até 31/3
Onde Caixa Cultural - pça. da Sé, 111, São Paulo, tel. (11) 3321-4400.
Preço Grátis
Classificação Livre