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SEGUEM OS DESTROÇOS CELESTES | texto Leila Danziger

SEGUEM OS DESTROÇOS CELESTES



Com mastros cantados, apontados para a terra

seguem os destroços celestes.


Nesta canção de madeira

cravas os dentes com força


Tu es a flâmula

sólida de canto.


Paul Celan

(tradução Raquel Abi-Sâmara)



Suas lembranças da travessia se concentravam em um único gesto: buscar debaixo de pilhas de livros e papéis um pequeno atlas — Deutschland und die Welt [A Alemanha e o mundo] —, que ele contava ter consultado ao longo da viagem que o trouxe com os pais ao Brasil. Nenhuma lembrança do percurso, a não ser o manuseio daquele livro. Entre suas páginas, num pequeno formulário de cor indefinida da Companhia de Navegação Chargeurs Réunis, lê-se o nome do navio Aurigny, que os transportou de Hamburgo ao Rio de Janeiro, passando por Antuérpia, Le Havre, La Coruña e Casablanca. Em 24 de dezembro, o navio atracou depois de vinte e cinco dias no mar. Para trás, uma nação a qual acreditaram pertencer, a Alemanha, criminosamente remodelada pelas leis raciais de Nuremberg, que mutilavam o conceito de cidadania, tornando-o restritivo e excludente em todo o Reich. O envelope 708, da Relação de Vapores número 378, que contém os documentos do navio Aurigny, documenta o desembarque de 42 passageiros — 32 imigrantes judeus —, entre eles Alfred (49 anos), Irene (37) e Rolf (14), meus avós e meu pai. O navio Aurigny, em sua dimensão quase messiânica, passou a integrar o mito de origem familiar — a chegada à terra redentora, como meu pai se referia ao Brasil.


Este projeto teve como senha, além do navio Aurigny, alguns outros nomes próprios. Em contato com familiares e amigos, surgiram o Almanzora (26/12/1938, com Erich, Klara e Helga Abraham — tios-avós); o General Artigas (17/08/1939, com Hilde, Martin e Edith Seligmann — a partir de Márcio Seligmann-Silva); o Conte Grande (04/04/1939, com Franca Cohen Gottlieb — a partir de Raul Gottlieb).


Ao lidar com esses documentos, pesquisados no Arquivo Nacional, desejei simplesmente abri-los, interrogar suas lacunas e espaçamentos, misturar as diferentes listas, lançá-las novamente no presente, numa grande arca de nomes e destinos, que quer abarcar não apenas os que aqui encontraram um porto, mas aqueles, muito mais numerosos, que o buscaram inutilmente. Compreendo as listas em si mesmas como embarcações, “pedaços de espaço flutuantes”, como Foucault define os navios, heterotopias máximas, que abrigam os nomes dos passageiros e suas respectivas informações — idade, sexo, religião, profissão (inventadas, em sua maioria), estado civil, porto de procedência, último endereço no país de origem, e destino.


Em clara homenagem a Lasar Segall, o título deste projeto faz referência a uma de sua pinturas mais célebres, realizada em 1939/41, quando navios lotados de refugiados se lançavam nos mares. Mas na tela de Segall, a embarcação não parece orientar-se a terra, ao porto, mas ao céu, como observou com precisão Paulo Sérgio Duarte: “o plano em que a imagem se realiza, ascende, se eleva [...]”. A embarcação “paradoxalmente, navega para cima, como se independentemente das tempestades, passadas ou futuras, sua direção se perdesse no infinito, não apontando para nenhum porto.” (1) E sabemos bem que portos inalcançáveis fazem surgir “covas nos ares”, na inscrição poderosa da poesia de Paul Celan, aquela que para Theodor Adorno responde de modo legítimo — ou seja, na infinita discrição — ao horror extremo.


Mas no início dos anos 2010, enquanto fazia o levantamento das listas de passageiros no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, o Mar Mediterrâneo se encheu de embarcações desesperadas e precárias. Lampedusa, Lesbos, Kalymnos, Sète são alguns pontos numa rota de fuga e de morte, que está longe de ter sido apaziguada. A série Mediterrâneo é feita de arquivos encontrados na internet, vídeos que parecem quase tocar o real, jogados na rede como uma garrafa ao mar, embora sempre sob a perspectiva do salvamento. Ao lidar com o fluxo de visualidade que me chega pelos meios de comunicação, pergunto-me o que fazer para que a textura da imagem contenha de alguma forma o desastre? Trabalho com informações retiradas de sites de notícias, mas também de bases de dados criadas para tentar dar conta desse fluxo migratório ininterrupto, em que inexistem identificações dos refugiados, mas apenas nomes de praias e portos, coordenadas geográficas, números e descrições aproximadas de corpos. Essas informações acrescentam uma nova e terrível camada de sentido à história do Mediterrâneo, a qual se dedicou o historiador Fernand Braudel: "O conjunto do Mediterrâneo é esse espaço-movimento. Aquilo que o aborda, guerras, sombras de guerras, modas técnicas, epidemias, materiais leves ou pesados, preciosos ou toscos, tudo é metabolizado pelo fluxo de sua corrente sanguínea e levado para bem longe, aqui ou ali esse fluxo se interrompe, sedimenta-se para mais tarde ser de novo arrastado, perenemente propagado ou até mesmo, quando fora de seus limites, rejeitado." (2)


Procurei integrar a grande literatura sobre o Mar Mediterrâneo às novas narrativas produzidas pelos hiperlinks que arquivam esses acontecimentos. Qual a imagem da informação, esse condensado de visualidade e discurso que crepita sem parar em nossos smartphones e monitores? Creio que em minha tentativa de produzir imagens, lido sempre com a ruína, a ruína da informação, que envelhece tão logo deixa de ser novidade. Os jornais e as mídias produzem ruínas instantâneas, como percebeu tão bem Jorge Luís Borges, ao chamar os jornais de “museus de minúcias efêmeras”. E gosto da sugestão de Peter Geimer, de que seria necessário escrever uma história do autoiconoclasmo da imagem como meio — a história da autodestruição das imagens. Constato que meu desejo de imagem é carregado sempre por esse desejo de apagamento, de ruína, de destruição da imagem — só há imagem em perigo. Ou, falando com as palavras de Celan: imagem — essa “canção de madeira”, à qual, como náufragos, nos apegamos com força.


Leila Danziger


____

1 Duarte, Paulo Sergio. Sua vida inclui a tristeza, mesmo nos momentos mais felizes. In: A gravura de Lasar Segall. Rio de Janeiro: Paço Imperial, 1987.


2 Braudel, Fernand. O Mediterrâneo e o Mar Mediterrâneo na Época de Felipe II, vol. I. São Paulo, 2016, p. 377.


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