Noite e neblina | Risco | Prosa&Verso | 27/12/2014
NOITE E NEBLINA | Carlito Azevedo
Num texto merecidamente famoso, Vilém Flusser diz que há os que se interessam pela neblina, onde as coisas mal se distinguem umas das outras, e os que se interessam por dissipar a neblina e dar a ver as diferenças que distinguem as coisas. Mas, quer se assuma esta ou aquela postura, o que não se pode negar é que tudo é neblina, ela é o nosso contorno espiritual, e simplesmente não há um fora-da-neblina. A memória, Eros, a morte, a tradição, a família, as agendas são pura neblina. Beijos? Neblina. O trabalho poético e em artes plásticas de leila Danziger luta contra a neblina, sabendo que é a luta mais vã. Organizar a morte em carimbos, agendas, números, metros? A vida também? Por quê? Guimarães Rosa diria: para convocar uma negatividade. Já John Ashbery está no lado oposto, o da indeterminação: "flutuamos/ sobre os nossos sonhos como se numa barcaça feita de gelo/ atravessados por perguntas e por fissuras de luz estelar." Em comum, justamente isso: vivem atravessados por perguntas. Em Kombis hiperrealistas de 1970 ou em barcaças de gelo cruzando o rio dos sonhos, sempre estaremos aqui para perguntar. E quando não mais?"
Protocolo de mudança
1
Desejo apenas o que há de mais inútil em seus arquivos
certificados de garantia
de todos os eletrodomésticos obsoletos
manual da Kombi de 1970
pocket books (tantas capas de naufrágios)
dezenas de fitas magnéticas
com camadas de ruídos
em tempo longuíssimo.
Leio 30 anos de nossas vidas
em fichas de débitos e créditos
e estou ali
– no centro –
de seus mundos em extinção.
Recolho promessas não realizadas
em sua língua da infância
calcinações do solo perdido
e prospectos
intactos
na língua renascida
(que é matéria incandescente).
Reviro blocos de décadas
cuja integridade se rompe
ao meu contato
e entendo –
brinco de céu e inferno com os objetos
sou o Além das coisas remotas.
2
Solto as páginas das agendas
libero os dias
embaralho semanas, meses, anos
modelo a massa do tempo que foi seu
– entre 1921 e 2011 –
um intervalo colossal
de eternidade humana.
Misturo minhas agendas
às suas extensões de branco
sobre branco
e reservas de futuros intactos
projetam-se
para além do fim dos tempos
que teve início
em trinta e um de dezembro
ou cinco de Tevet.
[Indiferente, a gata atravessa calendários
e adormece em maio de 1972.]
3
Desfaço o apartamento.
O quarto dos fundos era a pátria.
Guardo intacta
a lembrança das varandas
que se fecharam
antes de meu nascimento
com divisórias complacentes
permeáveis ao mundo
tudo vaza
para o interior
e janelas-fantasma
insistem em enquadrar
a lembrança do oceano.