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A FORÇA ENTRE O CHOQUE E A DELICADEZA [resenha Ano Novo, Revista Pessoa, 27/08/2017]

O ritmo intermitente da série de poemas que abre Ano Novo, segundo livro de poesia de Leila Danziger, reconhecida artista plástica, corresponde a um gesto repetido, o de desfazer. “Desfaço o apartamento -/ o quarto dos fundos/ ainda é a pátria (...)//ali fincaram-se mastros,/bandeiras incertas, trapos/da Europa.” A narrativa poética, que dialoga com um processo de criação também em artes plásticas, vai pouco a pouco liberando de seu limbo os objetos guardados no apartamento do pai recém falecido. Desfazendo, ela refaz lugares, espaços que são também linguísticos: “Recolho promessas de sua língua/da infância -/calcinações do solo perdido//e prospectos intactos na língua/renascida (alef-beit/incandescente)”.

Um desejo misterioso privilegia “apenas o que há de mais inútil” e estabelece novas hierarquias nas constelações de objetos, configurando um “outro lugar”, que é também um outro tempo (“tudo agora/embaralhado/extraviado/vivo/em algum outro lugar da casa”). Assim, aparecem duas tarefas: “transformar o apartamento em espaço baldio/revelar o daninho dos arquivos”. Desejo de buscar algo no passado, dele extrair sentidos, reconstruindo poeticamente a trajetória do pai, judeu alemão nascido em 1921 e naturalizado brasileiro? Um belíssimo poema responde negativamente a essa interrogação: “Reviro blocos de décadas/cuja integridade/se rompe ao meu contato//e entendo – //brinco de céu/e inferno/com os objetos//sou o Além/das coisas/remotas.”

O gesto poético que aqui desfaz e refaz conjuga verbos no presente. Essa fala não é a do passado mas a dos futuros longínquos que, empoeirados, esperam nos tesouros inúteis e suspensos no tempo. Entre os objetos arquivados, uma coleção de agendas jamais utilizadas é a própria imagem desse porvir que “somos nós/e já não somos”. Superpostas e costuradas (nunca coladas), elas dão origem a uma série de trabalhos plásticos com os quais os poemas dialogam e interagem: “Misturo minhas agendas/às suas extensões/de branco/sobre branco/e reservas de futuros/intactos/projetam-se”.

O futuro atravessa os entrecruzamentos temporais que a voz lírica coloca em cena e também costura (sem colar) as três séries temáticas que compõe o livro: “Economia”, “Ano Novo” e “Irene e Martha”. Confere assim ao volume uma unidade complexa, feita de sobreposições. Está presente no quarto onde a ausência momentânea do filho deixa traços, na foto das avós Irene e Marta, e de modo particularmente agudo na suspensão das decisões em vésperas de festas: “Entre Natal e Ano novo/entre Rosh Hashaná e Iom Kipur/não faça nada – /(...)//Encoste o ouvido/Na concha do mundo – /ouça em código/anúncios do futuro;/convites sonoros/que nos separam e reúnem – /fogos-funk-tambores-shofar.”

Diferentes passados permeados de futuros, que são também presentes, remetem a espaços e línguas que também se cruzam e tocam, produzindo pequenos choques delicados, como no poema Pão de açúcar, incluído na série intitulada Ano Novo, que tematiza encontros e desencontros amorosos: “Contemplo a paisagem pelo visor da sua câmara – /Mar Vermelho sobre Praia Vermelha;/Tel Aviv sobre Copacabana.//E mesmo disfarçado de alemão/ou americano, nenhuma língua é tão estrangeira/quanto a sua; nenhum tempo tão remoto/quanto o seu. Você é fenício? Egípcio/como Moisés?”

Em Ano Novo, esse tempo íntimo, afetivo, reenvia incessantemente a uma certa historicidade. As projeções subjetivas do desejo confrontam-se, a todo momento, com elementos sedimentados e coletivos – passagens permitidas pelo uso de jornais antigos, assim como pela própria presença do calendário, com suas festas e comemorações, nas agendas. Difícil não pensar em Walter Benjamin que, em seu comentário da poesia de Baudelaire, refere-se ao sentimento de exclusão do individuo moderno em relação à temporalidade coletiva da tradição, simbolizada no calendário. Radicalmente contemporânea, a poesia de Leila Danziger não busca restaurar o tempo coletivo da tradição ou resgatar a memoria de um passado. Situando-se além da crise que acompanha a modernidade, ela se inscreve nos interstícios entre o tempo do desejo e o da história. Ao colocar em cena esses hiatos e descontinuidades, Ano Novo encontra sua força de coisa futura, entre choque e delicadeza.

Patrícia Lavelle

Professora do Departamento de Letras da PUC-Rio,

doutora em filosofia pela EHESS-Paris.


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