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O álbum de lembranças como monumento

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Julieta de França: Lembrança de minha carreira artística

Organização de Amanda Bonan

Com Nara Reis e Lia Baron

Edição: Coletiva Projetos Culturais

Apoio: Prêmio Funarte Mulheres nas Artes Visuais, 2013/2014

Textos de Ana Paula Cavalcanti Simioni e Leila Danziger

O álbum de lembranças como monumento

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Sugiro um lugar para a leitura deste livro. Vá ao Jardim Botânico no Rio de Janeiro e siga por entre as palmeiras imperiais da aleia principal. Passe pelo Chafariz das Musas, pela gigante Samaúma, e, quase ao fim, quando os ruídos trazem de volta o entorno da cidade, você encontrará um portal ladeado de bambuzais. Atravesse-o e observe sua grandiosidade pelo avesso. Creio que os fundos do portal abrigam esperanças extraviadas de nossa história da arte anterior ao modernismo. À sombra desta construção, marco da presença tão contraditória do neoclassicismo no Brasil, as lembranças de Julieta de França encontram espacialidade privilegiada. Quantas vezes ela o terá atravessado acreditando que o futuro – pessoal e coletivo – estaria à altura de suas ambições? Embora comprometida com os ideais da República, a produção artística de Julieta surge da instituição que fez erguer aquele portal em 1826 no centro do Rio de Janeiro – a Academia Imperial de Belas Artes, transformada em Escola Nacional de Belas Artes com a proclamação da República –, mudança que não implicou em renovação artística efetiva. A presença deste elemento arquitetônico desterrado no Jardim Botânico é um dos signos mais eloquentes da existência desde sempre precária da instituição, cuja função seria transmitir e traçar rumos para a arte no país. Aquela ruína é o que resta da construção projetada por Grandjean de Montigny e demolida 112 anos após sua inauguração, sem jamais alcançar destacada projeção simbólica e completude física.

Folhear o álbum de Julieta de França desperta uma emoção semelhante a de percorrer ruínas; nosso olhar contemporâneo, marcado pela valorização da memória a partir das últimas décadas do século passado, encanta-se com a nova configuração dos documentos produzida pelo tempo e pelo acaso. Em belo texto sobre os Carceri, de Piranesi, Andreas Huyssen sugere que “temos nostalgia das ruínas da modernidade porque elas ainda parecem manter uma promessa que desapareceu em nossa época: a promessa de um futuro alternativo”. [1]

Embora fosse preciso refletir em que medida a arte e a cultura brasileira se inscrevem nesse pronome coletivo da frase de Huyssen, certo é que a arte moderna no Brasil se instaura sem relação ou nostalgia da produção artística do século XIX, aparentemente incapaz de nos acenar algum futuro, mas apenas nos reter em um passado obsoleto. A inteligência estratégica de nossos modernistas prescreveu que o modernismo ignorasse a produção acadêmica e ouvisse os apelos da arte colonial, sobretudo Aleijadinho, que para Mário de Andrade nos atualizava com “toda uma história”. Segundo o crítico paulista, ele é “evoca os primitivos itálicos, bosqueja a Renascença, se afunda no gótico, quase francês por vezes, muito germânico quase sempre, espanhol no realismo místico”.[2] Da produção acadêmica do século XIX, apenas Almeida Júnior parece-lhe capaz de nos acenar algum futuro e “profetizar para a nacionalidade um gênio plástico”[3]. É inegável que os academicismos que se sucederam ao longo do século XIX apresentam obras tímidas, problemáticas sob os mais diversos aspectos, mas que nos constituem justamente em sua fragilidade, expondo carências e impasses ainda hoje insolúveis. Recentemente, a arte oitocentista brasileira vem suscitando reavaliações e provocando talvez certa “nostalgia reflexiva”, para usar ainda a expressão de Huyssen, aquela capaz de revelar “que o pensamento crítico e a saudade não são opostos, da mesma forma que as memórias afetivas não desobrigam alguém de compaixão, discernimento ou reflexão crítica”.[4] Não se trata de sonhar com uma suposta grandeza perdida, pois essa nunca aconteceu, mas de resgatar promessas e ideais não realizados, ouvir as esperanças extraviadas daqueles tempos.

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Não sei se no melhor de seus sonhos, Julieta de França imaginou que o álbum “Souvenir de ma carrière artistique” seria publicado um dia, mais de cem anos após os momentos mais intensos e conturbados de sua vida artística. Embora sua aspiração fosse enquadrar-se no precário sistema da arte acadêmica nacional, em vigência ainda nas primeiras décadas do século XX, o embate enfrentado pela artista para legitimar um de seus projetos artísticos possui aspectos marcadamente atuais. Ao desafiar a soberania do júri que em 1906 recusou sua maquete para um monumento à República, Julieta de França lança luz sobre os intricados processos de legitimação da arte e suas condições de produção naqueles anos.

A narrativa construída em seu álbum, a partir de documentos cuidadosamente selecionados, não demonstra sua implicação no debate político travado em seu tempo. Tudo parece se dar no campo artístico, quando sabemos que o engajamento político talvez fosse decisivo para a aceitação ou não da obra proposta. Em seu monumento, Julieta faz uso da alegoria feminina, que domina a simbologia cívica francesa da Primeira à Terceira República. Embora seja difícil avaliar os detalhes do monumento a partir das fotografias presentes no álbum, o endereçamento genérico à República era bem pouco capaz de servir aos interesses de qualquer uma das correntes que se debatiam tentando firmar-se como fundadoras da República brasileira. A jovem nação precisava de elementos que buscassem afastar claramente o imaginário monarquista, povoando-o com valores e heróis republicanos. Por outro lado, como artista mulher, a situação de Julieta de França era especialmente audaciosa. Como poderia ela firmar-se como escultora de monumentos, sempre intrinsecamente ideológicos, quando o direito ao voto foi concedido às mulheres em nosso país apenas em 1932? Vale lembrar que a opacidade política não era uma singularidade da atuação de Julieta. Segundo José Murilo de Carvalho, apenas Décio Villares e Eduardo de Sá foram artistas politicamente militantes naqueles anos, ambos comprometidos com o positivismo, como sabemos, uma das correntes que disputou a definição do regime republicano[5].

Mas não me parece exagerado afirmar que o fracasso do monumento de Julieta de França não é maior do que o fracasso de grande parte dos monumentos efetivamente construídos em nossas cidades. De que modo fruímos a presença de tantos Florianos e Deodoros erguidos sobre pedestais em nossas praças senão como formas que ao sol da tarde nos projetam as sombras de um passado vago? Talvez apenas a figura de Tiradentes tenha se firmado (mais por obra de pintores do que de escultores) como símbolo de comunhão nacional – esquartejado e ambíguo, entre herói e santo –, atuando sobre nosso sempre tão frágil civismo republicano. Julieta de França ainda não era capaz de perceber o declínio da prática dos monumentos, seu acentuado desprestígio, detectado com humor e ironia por Robert Musil, em 1932, quando o escritor austríaco afirmou não haver nada mais invisível do que os monumentos públicos. Musil referia-se aos monumentos tradicionais, produzidos pela cultura histórica do século XIX, essa mesma tradição a qual a República brasileira recorria na tentativa de dar visibilidade a valores que “formassem a alma” do povo. Há tempos sabemos que a permanência física dos monumentos não os impedem de se tornarem opacos e hieroglíficos. A perda do sentido original de sua fundação acarreta sua transmutação em forma, marco visual capaz de agir na construção mental que fazemos da cidade, construção esta que nos permite a orientação espacial, mas é incapaz de gerar sentido histórico. A perda de sentido dos monumentos orienta um dos mais belos fragmentos de Walter Benjamin, que em “Rua de mão única” nos fala sobre o aspecto indecifrável do obelisco de Luxor deslocado na década de 1830 do Cairo para a Place de la Concorde, em Paris. “Nenhum dentre dez mil que passam por aqui se detém; nenhum entre os dez mil que se detém pode ler a inscrição”[6]. Seria preciso diferenciar o esquecimento produzido pelo excesso de história, que percebemos nas cidades europeias, daquele que é fruto de sua ausência, como acontece entre nós, mas assim sobrecarregaríamos o álbum de Julieta de sentidos demasiados. É preciso respeitar as lacunas, apagamentos e vazios que se inscreveram em seu livro; respeitar sua obra é dimensiona-la em sua justa modéstia.

Os documentos que integram o álbum são escritos em uma língua que embora compreensível não é mais a nossa, produzindo certa estranheza e esforço de decifração. A caligrafia presente em vários papéis guarda a memória de gestos realizados por corpos versados em disciplinas da qual nos afastamos. Avançar entre as páginas deste álbum é percorrer um espaço esquecido, situado entre o público e o privado, e que subitamente é aberto à visitação. Sua leitura é um esforço semelhante ao de quem retira os lençóis que recobrem os móveis de uma sala que, em vão, aspirou à grandeza . Não sabemos bem o que protegem e talvez jamais saibamos ao certo. Os objetos perderam a forma. Como no portal da Academia Imperial de Belas Artes, a entropia chegou antes do auge. Uma pátina vigorosa depositou-se sobre tudo e uma camada de distância recobre agora as imagens de suas esculturas. Subtraídas do contexto da arte acadêmica em sua frágil relação com o imaginário republicano, as fotos no álbum aproximam-se estranhamente das esculturas produzidas por Cy Twombly, artista americano, cujas obras ativam memórias inacessíveis, que jamais se entregam, escapando com sabedoria a cada que vez que acreditamos tê-las apreendido. Seguem recobertas por uma espécie de matéria que as torna especialmente resistentes às legendas dóceis.

No álbum de Julieta, a fotografia de seu monumento dedicado à Retirada da Laguna solicita especial atenção. A foto é tão vaga quanto a marca deste acontecimento histórico em nossa memória coletiva. Em sua condição de imagem, o monumento perde detalhes, e o pedestal, cuja função é elevar a obra inserindo-a em um espaço simbólico distinto, torna-se corpo, silhueta, parte integrante da escultura. Essa indiferenciação dos elementos e o silenciamento da narrativa torna a imagem da obra mais próxima de experiências sensíveis que realizamos desde a arte moderna. Este foi também um projeto não realizado, que respondia a uma iniciativa lançada por ocasião do centenário da independência. Como imagem, o monumento de Julieta assombra aquele efetivamente construído[7] ao pé do Pão de Açúcar, na Praia vermelha, com o qual convivemos sob o signo da paradoxal invisibilidade apontada por Musil. Pois acredito que os monumentos – voltados falaciosamente para a eternidade – não existem apenas quando permanecem fisicamente na cidade. Para existirem, ou seja, para operarem no campo da memória, da história e da cultura, não é imprescindível nem mesmo que tenham efetivamente sido construídos. Cumprem essas funções, com intensidades muito distintas, é certo, como projeto, maquete ou registro fotográfico. Algumas vezes, como no urbanismo utópico do século XVIII, não pretendiam de fato realizar-se. É o caso também dos desenhos de monumentos imaginários de Claes Oldenburg, que projetou, entre outros, um conjunto de cemitérios verticais espalhados pela cidade de São Paulo em forma de colossais parafusos. Creio que com a publicação do álbum de Julieta, seus projetos passam a integrar a imensa coleção de monumentos não construídos (como o de Morales de Los Rios ao Almirante Barroso[8]) ou depostos ao longo dos séculos, infinitamente mais numeroso do que os que se erguem. Seu álbum nos ajuda a compreender os últimos instantes da produção de arte acadêmica no Brasil, o longo século XIX, e se atualiza como ruína delicada dos primeiros anos de nossa república.

Leila Danziger

Rio de janeiro, julho de 2014

[1] Huyssen, Andreas. “A nostalgia das ruínas”, in: Culturas do passado presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória, tradução: Vera Ribeiro, Rio de janeiro: Contraponto/ Museu de Arte do Rio, 2014, p. 93.

[2] Andrade, Mário. “Aleijadinho”, in: Aspectos das artes plásticas no Brasil, Belo Horizonte: Itatiaia, 1984, p. 42.

[3] Idem, p. 41.

[4] Huyssen, op. cit., p. 93.

[5] Carvalho, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 84.

[6] Benjamin, Walter. “Rua de mão única”, in: Obras Escolhidas II, tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos M. Barbosa, São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 36.

[7] Trata-se do “Monumento aos Heróis de Laguna e Dourados”, de Antonino Pinto de Matos, situado na Praça General Tibúrcio, na Praia vermelha, Rio de Janeiro, que embora tenha sido selecionado em concurso público de 1921, foi construído de fato apenas em 1938.

[8] Ramos, Renato Menezes. História, herói e imortalidade: o projeto não executado de monumento ao Almirante Barroso, monografia apresentada como trabalho final de graduação, Instituto de Artes da Uerj, 2013.

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